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Papai Noel na forca e na fogueira: um suplício



Los niños pobres preguntan, dónde está San Nicolás.

(Villancico. Maestro Oswaldo Oropeza. 1962)

No natal de 1951, as igrejas Católica e Luterana realizaram um julgamento sumário e enforcaram nas grades da catedral de Dijon, no leste da França, um Papai Noel de 3 metros de altura, em seguida o incendiaram em praça pública, como “ação educativa”, diante de 250 crianças de um orfanato. O fogo queimou barbas, vestes, corpo de algodão, espalhando as cinzas no meio de densa fumaça. Por que pena de morte tão feroz, que lembra a Inquisição?

Pude me dar conta do contexto dessa violência simbólica ao percorrer com minhas netas Maia e Vitória, a exposição “Oito séculos de Papai Noel: uma viagem visível pela história” no Centro Cultural Paschoal Carlos Magno, em Niterói. Quinze modelos do atelier Graça Pereira mostram como os trajes dele foram mudando ao longo do tempo, desde a primeira roupa, no sec. XIII – uma batina branca, até a vermelha que conhecemos hoje.

A mudança, porém, não foi só no traje. Os incendiários acusaram o “Mau Velhinho” de transformar o aniversário do menino Jesus em uma festa pagã com fins comerciais e de usar o nascimento do menino pobre em uma estrebaria para estimular o consumismo desenfreado, enganar as crianças e enriquecer donos de fábricas e lojas. A forca e a fogueira foram a forma de reivindicar o caráter religioso – justificou o vigário de Dijon, Jacques Nourissat.  Presépio não é shopping.

Coca-colizado

Hoje é possível ver esse “holocausto” de Dijon com um pé atrás.  Mas naquele momento, o mundo saía de uma guerra – a primeira ou a segunda? perguntou Maia, de 7 anos – com estimativas de 70 a 85 milhões de mortos. Os americanos invadiram a França com seus produtos, cheesebourgers, hot-dogs, filmes de faroeste e oscambau a quatro, no que foi considerado uma agressão à culinária e à cultura francesa.

O escritor estadunidense Clement Moore, dono de uma imobiliária, havia escrito, em 1822, o poema “Uma visita de São Nicolau”, que popularizou a figura do Papai Noel dado como residente na Finlândia de onde viajava pelo mundo, incluindo o Brasil, em trenó puxado por renas voadoras. Foi um prato, digo, um copo cheio para a duvidosa e questionada Coca-Cola que, em 1931, usou Papai Noel como garoto-propaganda e o vestiu com suas cores:  vermelho e branco.

Quem pereceu no incêndio foi esse Papai Noel coca-colizado, que distribuía brinquedos caros produzidos em série. Mas ele ressuscitou horas depois nos telhados da Prefeitura de Dijon, com iluminação natalina, diante de outras crianças aglomeradas na Place de la Libération e desde então lá aparece até os dias de hoje em cada natal, como parte do calendário oficial da cidade. A lenda superou a manifestação religiosa e política. Como explicar tudo isso?

Três meses após o fogaréu de Dijon, o antropólogo Lévi-Strauss publicou na revista Les Temps Modernes o artigo “Le Père Noel Supplicié” editado depois em livro, no qual destaca “o divórcio entre a opinião pública e a igreja, considerando as reações contrárias quase unânimes”:

- É tão bonito acreditar no Papai Noel, isso não prejudica ninguém, as crianças ficam felizes e guardam deliciosas lembranças quando adultas. Na verdade, não se trata de justificar as razões pelas quais o Papai Noel agrada às crianças, mas sim os motivos que levaram os adultos a inventá-lo, sem nele acreditarem.

O suplício de Noel

Papai Noel enforcado e queimado nada tem a ver com o genocídio cometido por Netanyahu e os EUA na Faixa de Gaza, ali na Terra dita Santa. Se fosse hoje, o menino Jesus não poderia fugir para o Egito e nem  escaparia do bombardeio que já matou mais de 2.000 crianças.

O auto-da-fé de Dijon – diz o antropólogo - tentou eliminar Papai Noel, mas acabou por restaurar em toda sua plenitude sua figura ritual. Os pinheiros se multiplicaram nas encruzilhadas, iluminados à noite, assim como os papéis de embrulho decorados para presentes, os cantos de natal, os cartões ilustrados de felicitações exibidos na lareira dos destinatários, as ceias e, finalmente, os personagens disfarçados de Papai Noel atendendo as crianças nas grandes lojas.

É simplório atribuir o sucesso do Papai Noel unicamente à influência do mercantilismo norte-americano, pois sua origem é compartilhada por muitos povos e etnias separados pelos oceanos Atlântico e Índico - diz o autor de “Mitológicas”, que entende do riscado:

- Os ícones natalinos são vestígios de mitologias nativas americanas, nórdica, escandinava, celta e saxônicas e de fragmentos de mitos ancestrais. Os pinheiros de natal são árvores reverenciadas por bretões e sacerdotes druidas. Isso não elimina o mercantilismo oportunista da Coca-Cola, mas ressignifica o velho Noel ancorado em culturas anteriores à colonização, evidenciadas nas etnias do oeste norte-americano como comprovam os festivais do povo Katchina.    

Lévi-Strauss viu no suplício do Papai Noel a demonstração de que “todo aquele que é contra a autoridade da igreja pode ter o mesmo fim do boneco”, o que reflete a “mentalidade medieval dos tribunais da Inquisição. Os religiosos que queimaram Papai Noel demonstram ter o perfil similar ao daqueles que gritaram na multidão: - “Crucifica-o”. A igreja pretende ser porta voz de Deus na Terra, invocando para si o direito de dizer a seus súditos o que é sagrado e o que não é”.  

Cantos de natal

Sagrados e profanos são os cantos religiosos – os  villancicos ou aguinaldos do mundo hispânico, que comemoram o nascimento do menino Jesus e, às vezes, relacionam o natal com a pobreza e a desigualdade social. Um deles foi escrito pelo maestro venezuelano Oswaldo Oropeza, que se inspirou na ideia de Martin Lutero de usar o menino Jesus para entregar os brinquedos de natal no lugar do Papai Noel - o San Nicolás, reafirmando o lado sagrado da festa.

A canção conta a história de um menino pobre que pergunta à sua mãe porque esqueceram dele e não deixaram nenhum presente debaixo da árvore de natal. A primeira gravação foi feita por Raquel Castaños, uma menina de seis anos que, em uma entrevista, mencionou a dificuldade em cantar, porque tinha vontade de chorar.

Ho! Ho! Ho! Mudou o Natal ou mudei eu, mestre Machado de Assis?

Referências:

Maia pediu meu celular e fotografou cada um dos 15 modelos em seus diversos trajes. Suas perguntas e as de  Vitória (10) me levaram a buscar os textos abaixo:

  1. Joelza Ester Domingues. Papai Noel executado em holocausto, Blog Ensinar história. 08/12/2015.  https://ensinarhistoria.com.br/papai-noel-executado-em-holocausto/.

  2. Diogo Gonzaga Torres Neto. O suplício de Papai Noel, de Claude Lévi-Strauss: a resistência e complexidade de um mito ancestral. Anais do III Seminário Internacional em Sociedade e Cultura na Pan-Amazônia. Manaus. Publicado em 15/11/2018. https://www.doity.com.br/anais/iiisiscultura/trabalho/73272

  3. Clement Clark Moore. Uma visita de São Nicolau. 1822. Recanto das Letras. Guarulhos. Versão livre de Leila Lima https://www.recantodasletras.com.br/poesiasinfantis/7543069

  4. Claude Levi-Strauss. O suplício do Papai Noel. São Paulo. Cosac Naify.2008

Fotos da Exposição: Mauro Souza e Maia Freire Pereira


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