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Foto do escritorSerafim Corrêa

E se Jesus tivesse nascido em Buenos Aires?


Enquanto minhas mãos puderem escrever / enquanto meu cérebro puder pensar, / estaremos você, eu, todos / e haverá um amanhã. (Poema de Ana María Ponce, presa desaparecida na ESMA. 1978)

O nascimento, a vida e a morte de Jesus seriam diferentes, se ele fosse argentino como o Papa Francisco? Depende da época. Na ditadura militar, nasceria não numa estrebaria, mas na maternidade camuflada da Escuela Superior de Mecánica de la Armada (ESMA) – centro clandestino de tortura e extermínio, onde Maria, depois de parir, seria supliciada até morrer. O pibe sequestrado e vendido com outro nome, agonizaria na cruz. Atirariam no mar do alto de um avião o carpinteiro José, o vô Joaquim e os 12 apóstolos. 

E na redemocratização, como seria feita a justiça?  As leis do Ponto Final e da Obediência Devida promulgadas por Raúl Alfonsin em 1986 e 1987 respectivamente, sob pressão dos generais, blindavam os criminosos militares. Mas elas foram anuladas, em 2003, pelo Parlamento e no ano seguinte foram consideradas inconstitucionais pela Corte Suprema. Depois disso, o Poder Judiciário realizou audiências, ouviu 756 testemunhas, incluindo os poucos sobreviventes, investigou os sequestros massivos e reconstituiu torturas e assassinatos.

Os mortos e desaparecidos foram estimados em cerca de 30.000, quando localizaram mais de 700 centros de prisões clandestinas. O tribunal julgou e condenou 1.058 réus por crimes de torturas, homicídios, violações, abusos, roubos. Trancafiou em prisão perpétua militares delinquentes executores dos “voos da morte”, do feminicídio de mulheres grávidas e do sequestro e venda de bebês. O veredito, que determinou reparação e indenização às vítimas, foi lido para um grande público dentro e fora do tribunal.

O presidente Néstor Kirchner, em 2004, pediu perdão “pela vergonha do silêncio de vinte anos sobre as atrocidades cometidas pelo Estado” e tomou da Marinha os edifícios da ESMA, que foram transformados em sede do Museu da Memória e dos Direitos Humanos inaugurado em 2015.

Ex-Esma

No último 15 de novembro, horrorizado, percorri durante quatro horas os espaços da Ex-Esma declarada pela UNESCO “patrimônio da humanidade, de valor excepcional” por documentar crimes contra o gênero humano, que extrapolaram os limites da crueldade e da perversão. São mais de 20 prédios, um deles dedicado às crianças, outro às avós de netas e netos sequestrados, outro ainda ao Instituto Nacional de Assuntos Indigenas. Diante do que vi, tive a certeza de que os algozes do Jesus porteño não ficariam impunes.

Em verdade em verdade vos digo, Pilatos, o governador romano de mãos sujas, morreria no vaso sanitário de sua cela com a calça do pijama arriada, como o general Videla. Apodreceriam na prisão o Sumo Sacerdote Caifás, presidente do Sinédrio - que abrigaria um Museu para contar essa história tenebrosa, assim como seus cúmplices saduceus e filisteus.

As avós da Praça de Maio, lideradas por Sant`Ana, exigiriam a condenação de Herodes, o Tetrarca da Judeia, por decapitar João Batista, com pena dobrada por infanticídio, como ocorrerá um dia com o oligarca Netanyahu lá naquela terra considerada santa. Mofariam atrás das grades o centurião Cássio, que furou Jesus com lança e escarrou em seu rosto, os soldados que o chicotearam e enfiaram nele a coroa de espinhos e os que o pregaram na cruz. Simão Cirineu receberia a comenda da Ordem de Cristo.

Isso se Jesus fosse crucificado em Buenos Aires. Mas Jesus nasceu em Belém de Judá, lugar de impunidade tanto quanto Belém do Pará, onde a manjedoura de Jesus ficaria dentro do Forte do Presépio. Lá como em todo o território nacional, a ditadura roubou nossa memória, escondeu a documentação, anistiou torturadores, o maior deles, o coronel Brilhante Ustra, homenageado pelo Coiso. Mas na Argentina não foi assim que a banda tocou, como está documentado no Museu da Memória da Ex-Esma.

Voos da morte  

Nos jardins da Ex-Esma está exposto um dos aviões repatriados dos Estados Unidos, usado em dezembro de 1977 no “voo da morte” que arrojou ao mar 12 pessoas, entre elas duas freiras francesas e três mães da Praça de Maio, cujos corpos apareceram boiando na beira-mar na costa de Buenos Aires.  Enterrados em vala comum como “não identificados”, só em 2005, a Equipe Argentina de Antropologia Forense reconheceu os corpos no cemitério através de exames de DNA.

Os dados foram cruzados com as planilhas e os planos de voos, contendo os nomes dos pilotos no período de 1976 a 1979. Cerca de 5 mil pessoas desapareceram assim, atiradas nuas no mar depois de adormecidas sob o efeito da droga denominada cruelmente de “pentonaval”. O ex-militar da Marinha, Adolfo Scilingo, confessou publicamente ter participado de pelo menos dois “voos da morte” em entrevista ao jornalista Horácio Verbitsky e foi condenado por tribunais espanhóis a 1.724 anos de prisão.

Outros corpos aparecidos na praia foram enterrados sem identificação com a cumplicidade de policiais, médicos e até juízes, depois de atirados do avião Skyvan Pa-51, identificado pela jornalista Miriam Lewin presa na ESMA e dada por um tempo como desaparecida.

No Brasil, o terrorismo de Estado não foi menor, mas a documentação permanece inacessível. Aqui nenhum torturador foi julgado e preso. Aqui militares mataram, esfolaram e continuam impunes. Dentro de três meses, o golpe de 1964 completa 60 anos e ainda morremos de vergonha pelo silêncio ensurdecedor agravado com a extinção da Comissão de Mortos e Desaparecidos no governo do Coiso.

Os fornos de Cambahyba

Mas a luta pela memória, apesar de não ser tão eficaz como na Argentina, não esmorece. Na quarta-feira (6/12), centenas de pessoas realizaram em Campos dos Goytacazes (RJ) um ato em memória dos 12 militantes assassinados pela ditadura, entre eles o amazonense Thomazinho Meirelles, cujos corpos foram incinerados nos fornos da Usina Cambahyba, segundo depoimento do torturador Cláudio Guerra à Comissão da Verdade.

Os manifestantes reivindicaram o tombamento e a desapropriação da usina e da casa grande, sem que a mídia desse a devida importância.  Temos muito a aprender com los hermanos. Confesso ter saído arrasado da visita ao Museu da Ex-Esma, mas ao mesmo tempo esperançoso pela força da resistência ali contida. A recuperação da memória – como eles dizem – dói, mas cura.

- A memória arderá até que tudo seja como sonhamos – escreveu Paco Urondo, fuzilado pela ditadura. Sua filha Cláudia e seu genro Mário também foram sequestrados, torturados e assassinados pelos militares. Levam o nome de Paco Urondo uma pracinha em Porto Madero, um centro cultural da Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires e o Centro Cultural de Santa Fé. A memória arde.

Desejo um Feliz Natal aos raros e fieis leitores, com as lembranças vivas do Jesus porteño, ao lado deste poema preso e, enfim, livre:

 Aquí,  estamos, estás

estamos, vos, yo, todos.

Mientras mis manos puedan escribir

mientras mi cerebro pueda pensar,

estaremos vos, yo, todos

y habrá un mañana.

SOBRE ANA MARIA PONCE

No dia 18 de Júlio, Ana Maria Ponce foi sequestrada no Jardim Zoológico de Buenos Aires e presa até 1978 na ESMA. Lá, escreveu vários poemas.  Sua colega de cárcere, Graciela Daleo, que conseguiu sobreviver, contou depois no Tribunal:

“Na segunda-feira de carnaval, um meganha, que foi me buscar no “Aquário” (Pecera), me diz que eu tinha que descer ao “Porão”, porque a Loli - esse era seu apelido - precisava falar comigo. Eles me levam ao porão. Não sei o que Loli terá inventado para fazer esse pedido. Quando ela entra, Pedro Cacho diz a ela:

- “Prepare-se, vamos levá-la para La Plata”.

Nós nos olhamos e nos despedimos para sempre. Loli percebeu, e eu também, do que estava por vir. Ela tirou um envelope da bolsinha, me deu, e disse:

- “Guarde isso”.

O envelope continha os poemas que ela foi escrevendo enquanto estava sequestrada, poemas de prisioneira. Com Alicia Milia, os conservamos, e alguns anos atrás, conseguimos entregá-los ao seu filho. Levaram Loli, eu fiquei no porão, desesperada, com a certeza sobre o que ia acontecer.

Referências:

  1. Horacio Verbitsky: O Vôo. Rio. Editora Globo. 1995. Tradução de Paulo Octaviano Terra

  2. Miriam Lewin: Skyvan, aviones, pilotos y archivos secretos. Buenos Aires. Sudamericana. 2017

  3. Lucía García Itzigsohn. Escribir la ESMA. Buenos Aires. Tiempo Argentino. 2023

 


¿Y si Jesús hubiera nacido en Buenos Aires?

Mientras mis manos puedan escribir / mientras mi cerebro pueda pensar, / estaremos vos, yo, todos / y habrá un mañana. (Poema de Ana María Ponce, presa desaparecida en la ESMA. 1978)

¿El nacimiento, la vida y la muerte de Jesús serían diferentes si fuera argentino como el Papa Francisco? Depende de la época. En la dictadura militar, no nacería en un establo, sino en la maternidad camuflada de la Escuela Superior de Mecánica de la Armada (ESMA) – un centro clandestino de tortura y exterminio, donde María, después de dar a luz, sería sometida a tormentos hasta morir. El pibe secuestrado y vendido con otro nombre agonizaría en la cruz. Arrojarían al mar desde lo alto de un avión al carpintero José, al abuelo Joaquín y a los 12 apóstoles.

Y en la redemocratización, ¿cómo se haría justicia? Las leyes del Punto Final y de la Obediencia Debida promulgadas, bajo presión de los generales, por Raúl Alfonsín en 1986 y 1987 respectivamente, protegían a los criminales militares. Sin embargo, fueron anuladas en 2003 por el Parlamento y al año siguiente fueron declaradas inconstitucionales por la Corte Suprema. Después de eso, el Poder Judicial llevó a cabo audiencias, escuchó a 756 testigos, incluidos los pocos sobrevivientes, investigó los secuestros masivos y reconstruyó torturas y asesinatos.

Los muertos y desaparecidos se estimaron en alrededor de 30,000, cuando se localizaron más de 700 centros de detención clandestinos. El tribunal juzgó y condenó a 1,058 acusados por crímenes de tortura, homicidios, violaciones, abusos y robos. Encarceló de por vida a militares delincuentes responsables de los "vuelos de la muerte", del feminicidio de mujeres embarazadas y del secuestro y venta de bebés. El veredicto, que determinó reparación e indemnización a las víctimas, fue leído ante un gran público dentro y fuera del tribunal.

En 2004, el presidente Néstor Kirchner pidió perdón "por la vergüenza del silencio de veinte años sobre las atrocidades cometidas por el Estado" y tomó de la Marina los edificios de la ESMA,  que fueron transformados en la sede del Museo de la Memoria y los Derechos Humanos inaugurado en 2015.

Ex-Esma

El 15 de noviembre pasado, horrorizado, recorrí durante cuatro horas los espacios de la Ex-ESMA, declarada por la UNESCO "patrimonio de la humanidad, de valor excepcional" por documentar crímenes contra el género humano que trascendieron los límites de la crueldad y la perversión. Son más de 20 edificios, uno de ellos dedicado a los niños, otro a las abuelas de nietas y nietos secuestrados, y otro al Instituto Nacional de Asuntos Indígenas. Ante lo que vi, tuve la certeza de que los verdugos del Jesús porteño no quedarían impunes.

En verdad os digo, Pilatos, el gobernador romano de manos sucias, moriría en el inodoro de su celda con los pantalones del pijama bajados, al igual que el general Videla. En la cárcel se pudrirían el Sumo Sacerdote Caifás, presidente del Sanedrín, que albergaría un Museo para contar esa historia tenebrosa, así como sus cómplices saduceos y filisteos.

Las abuelas de la Plaza de Mayo, lideradas por Sant'Ana, exigirían la condena de Herodes, el tetrarca de Judea, por decapitar a Juan Bautista, con una pena duplicada por infanticidio, como ocurrirá un día con el oligarca Netanyahu allá en esa tierra considerada santa. Mofarían tras las rejas el centurión Casio, que atravesó a Jesús con una lanza y escupió en su rostro, los soldados que lo azotaron y le colocaron la corona de espinas, y los que lo clavaron en la cruz. Simón de Cirene recibiría la condecoración de la Orden de Cristo.

Esto sucedería si Jesús fuera crucificado en Buenos Aires. Pero Jesús nació en Belén de Judea, tan impune como Belén de Pará, donde el pesebre de Jesús estaría dentro del Fuerte del Presépio. Allí, al igual que en todo el territorio nacional, la dictadura robó nuestra memoria, ocultó la documentación, amnistió a torturadores, el mayor de ellos, el coronel Brilhante Ustra, homenajeado por el Coiso que presidia Brasil. Pero en Argentina, no fue así como sonaron los tambores, como está documentado en el Museo de la Memoria de la Ex-ESMA.

Vuelos de la muerte

En los jardines de la Ex-ESMA se exhibe uno de los aviones repatriados de los Estados Unidos, utilizado en diciembre de 1977 en el "vuelo de la muerte" que arrojó al mar a 12 personas, entre ellas dos monjas francesas y tres madres de la Plaza de Mayo, cuyos cuerpos aparecieron flotando en la costa de Buenos Aires. Enterrados en una fosa común como "no identificados", solo en 2005, el Equipo Argentino de Antropología Forense reconoció los cuerpos en el cementerio a través de pruebas de ADN.

Los datos fueron cruzados con las hojas de ruta y los planes de vuelo, que contenían los nombres de los pilotos en el período de 1976 a 1979. Alrededor de 5 mil personas desaparecieron de esta manera, arrojadas desnudas al mar después de ser dormidas con el efecto de la droga denominada cruelmente "pentonaval". El exmilitar de la Marina, Adolfo Scilingo, confesó públicamente haber participado en al menos dos "vuelos de la muerte" en una entrevista con el periodista Horacio Verbitsky y fue condenado por tribunales españoles a 1,724 años de prisión.

Otros cuerpos encontrados en la playa fueron enterrados sin identificación con la complicidad de policías, médicos e incluso jueces, después de ser arrojados desde el avión Skyvan Pa-51, identificado por la periodista Miriam Lewin, quien estuvo detenida en la ESMA y fue considerada desaparecida por un tiempo.

En Brasil, el terrorismo de Estado no fue menor, pero la documentación sigue siendo inaccesible. Aquí, ningún torturador ha sido juzgado y encarcelado. Aquí, los militares mataron, desollaron y siguen impunes. En tres meses, el golpe de 1964 cumplirá 60 años y todavía nos avergonzamos por el ensordecedor silencio agravado con la extinción de la Comisión de Muertos y Desaparecidos durante el gobierno del Coiso.

Los hornos de Cambahyba

Pero la lucha por la memoria, a pesar de no ser tan efectiva como en Argentina, no se debilita. El miércoles (6/12), cientos de personas llevaron a cabo un acto en memoria de los 12 militantes asesinados por la dictadura en Campos dos Goytacazes (RJ), entre ellos el amazonense Thomazinho Meirelles, cuyos cuerpos fueron incinerados en los hornos de la Usina Cambahyba, según el testimonio del torturador Cláudio Guerra ante la Comisión de la Verdad.

Los manifestantes exigieron la declaración de patrimonio histórico y la expropiación de la usina y la casa grande, sin que los medios de comunicación le dieran la debida importancia. Tenemos mucho que aprender de nuestros hermanos. Confieso que salí devastado de la visita al Museo de la Ex-ESMA, pero al mismo tiempo esperanzado por la fuerza de la resistencia allí presente. La recuperación de la memoria, como ellos dicen, duele, pero cura.

"Arderá la memoria hasta que todo sea como lo soñamos" - escribió Paco Urondo, fusilado por la dictadura. Su hija Cláudia y su yerno Mário también fueron secuestrados, torturados y asesinados por los militares. Un parque en Porto Madero, un centro cultural de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad de Buenos Aires y el Centro Cultural de Santa Fe llevan el nombre de Paco Urondo. La memoria arde.

Les deseo una Feliz Navidad a los raros y fieles lectores, con los recuerdos vivos del Jesús porteño, junto a este poema aprisionado y, finalmente, libre.

. Aquí,  estamos, estás

estamos, vos, yo, todos.

Mientras mis manos puedan escribir

mientras mi cerebro pueda pensar,

estaremos vos, yo, todos

y habrá un mañana

 

SOBRE ANA MARÍA PONCE

El 18 de julio, Ana María Ponce fue secuestrada en el Jardín Zoológico de Buenos Aires y detenida hasta 1978 en la ESMA. Allí, escribió varios poemas. Su compañera de cautiverio, Graciela Daleo, que logró sobrevivir, contó después en el tribunal:

"El lunes de carnaval, un ‘verde’, que vino a buscarme a la ‘Pecera’, me dijo que tenía que bajar al 'Sótano' porque Loli, ese era su apodo, necesitaba hablar conmigo. Me llevaron al ‘Sótano’. No sé qué habrá inventado Loli para hacer esa solicitud. Cuando ella entra, Pedro Cacho le dice:

- Prepárate, la vamos a llevar a La Plata'.

Nos miramos y nos despedimos para siempre. Loli se dio cuenta, y yo también, de lo que estaba por venir. Sacó un sobre de su bolsita, me lo dio y dijo:

-  Guarda esto.

El sobre contenía los poemas que ella fue escribiendo mientras estaba secuestrada, poemas de prisionera. Con Alicia Milia, los conservamos, y hace algunos años, logramos entregárselos a su hijo. Se llevaron a Loli, yo me quedé en el ‘Sótano’, desesperada, con la certeza de lo que iba a suceder.

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