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Foto do escritorSerafim Corrêa

A O presidencialismo emparedado


O mais famoso dos bardos ingleses valeu-se do disfarce da grande poesia para fazer ciência política. Em uma de suas peças mais lidas, recitadas, ouvidas e vistas (Rei Lear, de 1602), William Shakespeare conta-nos a história de um velho soberano que, descuidado das lições de Maquiavel (O príncipe, 1532), e desprotegido de virtù após ser abandonado pela fortuna, decide, na velhice, pretendendo salvá-lo, dividir seu vasto e poderoso império com suas filhas, igualmente herdeiras. A novela é conhecida: o poder se desconstitui, e o monarca, despido da coroa, conhece o mais vil opróbio, até salvar-se na loucura. A interpretação da saga é, claro, obra aberta. Uma delas pode ser esta: não faz a guerra (ou seja, não se defende), quem foge da adversidade.


Muitas vezes, para poder salvar o mandato, o governante cede o governo. Frequentemente, o dirigente político é levado a se curvar ao que os cientistas grafaram como “correlação de forças” e Ortega y Gasset (Meditaciones del Quijote, 1914) resumiria como o império das circunstâncias: “Eu sou eu e minhas circunstâncias, e se não me salvo nelas não me salvo a mim”. Parece ser este o desafio de Gabriel Boric, no Chile, governante de centro-esquerda (na origem eleitoral) impotente, em face das circunstâncias, para alterar a correlação de forças que se revela adversa, em país ainda polarizado tantos anos passados daquela que certamente vai para a história como a mais abjeta das abjetas ditaduras militares da América Latina. Impotente para levar a cabo um governo de avanços (promessa da campanha eleitoral), acossado por uma constituinte de extrema-direita, tende a seguir no cargo (ou, mais precisamente, a preservar o mandato), mas só podendo implementar, do programa com o qual se elegeu, a pequena parte que os donos do poder julgarem palatável.


Praz aos céus que não estejamos às portas de um recidiva da tragédia chilena, pois a história registra, sem parcimônia, quantas batalhas foram perdidas simplesmente por não terem sido travadas. A propósito, acusa-se Jango por não haver resistido em 1964 (para o que, supõe-se, teria apoio), e, para criticá-lo, todos se valem do exemplo de seu cunhado Leonel Brizola, pondo por terra a tentativa de golpe dos militares em 1961, simplesmente por a ele resistir.


Essas questões, ainda sem qualquer sorte de dramaticidade, se colocam em nossa história presente, com os impasses que se impõem ao governo Lula.


A conjunção entre o reacionarismo tout court (o atraso que nos persegue desde o período colonial) e o fisiologismo do baixo clero, gerenciado pelo presidente da Câmara dos Deputados, é um dos indicadores do esgarçamento institucional que se vem acentuando nos últimos anos, mais notadamente desde 2016, quando o Congresso Nacional, na contramão da ordem constitucional, se insurgiu contra a vontade da soberania popular, ditada no pronunciamento das urnas, assim atingindo de morte não apenas a reclamada independência dos poderes, mas os fundamentos da democracia representativa um projeto que, entre nós, ainda não passa de mera expectativa de futuro.


Como falar em democracia em sociedade clivada por brutal desigualdade social?


Na década passada, após impedir a presidente Dilma Rousseff de governar, papel levado a cabo pela Câmara dos Deputados, o Congresso extinguiu-lhe o mandato legitimamente conquistado nas urnas, dizendo para a história que entre nós o império da soberania popular não salta das páginas da Constituição para a vida real. Era o golpe de 2016, cujas consequências ainda hoje padecemos.


Formalmente vencidas as vicissitudes que se instalam em 2018, é eleito em 2022 um novo Congresso, que se afigura como um mostrengo, ainda mais reacionário que o antecedente, ainda mais preso, como craca sedenta, às tetas do erário. Fruto direto do esquema de corrupção que a crônica política identifica como “orçamento secreto”, o Poder Legislativo de hoje, e nele cumprindo papel primordial a Câmara dos Deputados, é um leviatã insaciável na sua sede por mais poder, impondo-se como verdadeira ditadura sobre o executivo, cuja capacidade de ação é crescentemente limitada, como é limitada sua capacidade de formular políticas. Não se pode dizer que a história intenta repetir-se, mas é fora de dúvida que a este filme já assistimos.


O presidente da Câmara, vitorioso sempre que o governo perde ou a direita (de dentro e de fora de sua base de apoio) ganha, diz que o governo precisa curvar-se ao “congresso empoderado” e negociar. O verbo negociar, como sabe o leitor, empresta-se aos mais variados entendimentos, e a acepção do jagunço das Alagoas não é a mais canônica. Reimposto por outros meios o teto dos gastos – o que inviabiliza o projeto lulista aprovado majoritariamente pelo eleitorado , alterada a estrutura dos ministérios para facilitar a ação dos grupos de pressão, ameaçados a defesa do meio ambiente e o mínimo de proteção às populações nativas, o presidente da Câmara confronta o Planalto, dizendo que o Congresso é governo, e, nestes termos, mais forte que o governo mesmo: “O congresso conquistou mais protagonismo nos últimos anos, é liberal e conservador e destoa do governo”. Este que se adapte, ou seja, que se adeque às novas circunstâncias de um presencialíssimo emparedado.


O capo porta-se, arrogante, como o toureiro que no meio da arena, cutelo em punho, chama a fera ferida, cansada, exangue, para a última partida. O recado é óbvio: ou o presidente Lula compõe com a direita (e como tal entenda-se o que se quiser), ou não governará. Ou, governará como o novo rei da Inglaterra, levando a cabo projeto que não é o seu.


O processo em curso, montado à luz do dia, claramente, sem subterfúgios ou cerimônias, visa a reinstalar, no governo Lula, o governo rejeitado pelo eleitorado. Uma afronta à democracia que deve ser interpretada, julgada e enfrentada como o que de fato é, pois o chamado “terceiro turno” das eleições a que se reportam comentaristas políticos tem nome e sobrenome: golpe de Estado.


Na retaguarda, um ministério que, concebido com o justo objetivo de garantir estabilidade institucional (donde determinadas concessões) e governabilidade (donde outra série de concessões) não oferece hoje ao presidente nem a homogeneidade de que carece todo projeto de governo (que continua sendo um projeto do presidente Lula) e menos ainda o respaldo parlamentar que era sua justificativa. É um ministério velho de cinco meses, visivelmente cansado quando é tão óbvia a virulência dos adversários, pois a oposição parlamentar tem na sua retaguarda o grande capital.


      Perigosamente, a esquerda, e, a partir dela, o movimento social e as chamadas forças democráticas, progressistas ou não, bem como os ditos liberais (estes como sempre), submergem, e assistem, como plateia silenciosa, ao embate entre direita e extrema-direita, que passam a ocupar o proscênio.


Tudo isso enseja uma questão crucial: a tarefa fundamental das forças democráticas – portando para além da esquerda e dos liberais é sustentar o governo Lula.

***


As mãos sujas– Henry Kissinger completará cem anos de idade no próximo sábado, e será amplamente festejado. Falar-se-á do estrategista que intermediou a abertura dos EUA para a China e buscou a détente com a URSS durante suas passagens como conselheiro de segurança nacional e secretário de Estado de Richard Nixon. É preciso, contudo, fazer as contas dos horrores causados pelas conspirações, golpes e sabotagens que o teuto-americano planejou ou apoiou. Centenas de milhares – um milhão, talvez – de mortos em Bangladesh, Camboja e Timor Leste. Dezenas de milhares de mortos e torturados na guerra suja da Argentina e na ditadura pinochetista, no Chile. Democracias golpeadas. E é preciso lembrar que Kissinger, para sempre impune, sequer levado a julgamento, não agiu por conta própria, como um matador solitário, mas tramou atrocidades trabalhando para dois presidentes da nação que ainda ousa apesar de toda evidência se apresentar ao mundo como baluarte da democracia e dos direitos humanos, estabelecendo parâmetros com os quais muita gente boa, mundo afora, até hoje se orienta no cenário global.


Um sopro – Em meio a dúbias celebrações pela aprovação, na Câmara que aí está, do novo arcabouço fiscal, por meio do qual o governo Lula voluntariamente se lança a uma armadilha, merece destaque a declaração de voto assinada por 23 deputados, quase todos petistas, por meio da qual reiteram sua lealdade ao presidente da república, mas não se furtam em denunciar a trampa: "Lamentamos que ainda não tenha sido possível libertar o poder público do estrangulamento provocado pelos interesses do capital rentista, que busca subjugar o Tesouro [...] às custas do empobrecimento do povo brasileiro e da sangria de nossa economia".


Educação em perigo - Uma pergunta não quer calar: por que o Executivo não lutou, até aqui, para preservar o Fundeb, fabulosa conquista do primeiro governo Lula, sempre combatido pelo capital privatista, e que até mesmo Temer, o perjuro, deixou de fora das amarras impostas pela ortodoxia liberal?




*Com a colaboração de Pedro Amaral

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